Uma descoberta importante para minimizar a dor de pacientes com cancro e SIDA, por exemplo. Uma forma de equilibrar um coração com arritmia. Uma hipótesede proteger e recuperar as células atingidas por isquémias cerebral e na retina. Tudo isso são possibilidades surgidas do uso de toxinas das aranhas-armadeiras, animais peçonhentos que não fazem teia e se encontram facilmente em bananeiras e buracos na terra e debaixo de folhas secas ou entulhos de obra. Em estágio avançado, pesquisas feitas em Minas Gerais sobre o tema já foram patenteadas, receberam apoio de instituições renomadas no Brasil e, em aproximadamente cinco ou seis anos, os testes passarão a ser feitos em humanos.
O trabalho para desvendar o veneno da Phoneutria nigriventer começou nos laboratórios da Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Belo Horizonte. Aranhas de campo e algumas criadas em cativeiro são induzidas a liberar o veneno, usado especificamente para imobilizar as suas presas ou para a sua defesa em situações de risco. A cada dois meses, os técnicos anestesiam o aracnídeo com gelo seco e dão choques nas quelíceras das aranhas — articulações localizadas do lado da boca, onde ficam as garras, que servem para apanhar as presas e injectar o veneno, conseguindo assim extrair 10 microlitros do composto.
Depois disso, a farmacêutica com doutorado em bioquímica Marta do Nascimento Cordeiro, que coordena o estudo, separa cada uma das substâncias até torná-las puras. O processo passa pelo congelamento do veneno para remoção da parte líquida (liofilização), desidratação semelhante àquela usada para preservar alimentos perecíveis. Assim, a parte sólida é examinada pelas máquinas, que fazem a leitura e o registro dos pelo menos 80 componentes do veneno. Para identificar a pureza, retira-se também o sal dessas substâncias.
A pesquisa começou em 1963, mas, à época, não era possível purificar as moléculas na quantidade necessária. Com equipamentos mais modernos, os estudos avançaram. “ O Nosso objectivo era saber qual o componente que evidenciava cada sintoma em casos de picada”, explica a pesquisadora. A lista dos efeitos da picada observados em animais e humanos é longa: dor pungente e imediata, que irradia; cãibras dolorosas; tremores musculares; convulsões; paralisia; sudorese; priapismo; perturbações cardíacas; e distúrbio visual.
“Essa é uma aranha errante, que precisa caçar porque não faz teia. Como todo o animal peçonhento, a aranha só ataca para se alimentar ou ao se sentir ameaçada, para sua própria defesa. Houve um caso recente de um adulto picado em Campinas, em 2008. Ele foi atingido na nuca, uma área sensível, mas sobreviveu. Crianças e idosos são mais frágeis e, nesses casos, o risco é maior”, explica Marta.
Resultados
A primeira fase é essencial para as análises biológicas feitas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Ensino e Pesquisa da Santa Casa, colaboradores da pesquisa. Os testes em casos de dor mostraram que uma das toxinas da aranha é mais efetiva que a morfina — e em doses cinco vezes menores. Segundo o coordenador da pesquisa de toxicologia, Marcus Vinícius Gomez, os efeitos do veneno da aranha duram 24 horas, enquanto o efeito da morfina desaparece em apenas quatro. Outra vantagem é que as toxinas não desenvolvem tolerância, como a droga.
Os estudos sobre a Phoneutria nigriventer foram feitos paralelamente a um trabalho desenvolvido nos Estados Unidos e na Europa com o caramujo-marinho, e chegaram a conclusões muito parecidas. Desde 2006, as toxinas do caramujo já são usadas em medicamentos contra dor, cujo produto comercial chama-se Prialt, que chegou ao mercado quatro anos depois dos testes em humanos. De acordo com Gomez, as toxinas da aranha são ainda mais potentes que as do caramujo-marinho e, principalmente, apresentam menos efeitos adversos.
“Percebemos que elas pertenciam à mesma estrutura química (proteínas) e a toxina da aranha repetia os efeitos do caramujo. Então, resolvemos testá-la para dor também, e descobrimos que ela ainda é mais potente, mais capaz de reverter a dor, com menos efeitos adversos. Outro detalhe é que as toxinas não causam alergia e, por isso, podem ser testadas em humanos. Não tínhamos ilusões para aplicações terapêuticas, só queríamos saber como elas agiam nos canais de cálcio (canais iônicos encontrados em células excitáveis)”, conta o professor.
Três toxinas da aranha estão em estudo. Uma delas atua contra dores do câncer e de complicações da Aids, cirúrgicas e químicas; contrações abdominais; e contra o sofrimento relacionado à remoção do nervo ciático. As outras duas têm efeitos contra as isquemias cerebral e na retina e contra a arritmia. A dificuldade, segundo o pesquisador, é a obtenção e produção de grandes quantidades do veneno. Por isso, as moléculas estão sendo recombinadas (clonadas). Uma empresa em Campinas já trabalha na formação dessas mesmas cadeias em laboratório. Para o especialista, em quatro ou cinco anos já será possível pedir licença para usar as toxinas contra a dor nos testes em humanos.
Coração
As experiências em ratos e camundongos mostraram que a toxina age recuperando o equilíbrio na batida do coração. Avaliado in vitro, o coração fica isolado numa solução nutridora e sua artéria é amarrada com um pequeno fio. Quando ela é solta, o coração trabalha em desequilíbrio, mas a ingestão da toxina aumenta a liberação de acetilcolina, substância que atua como neurotransmissora e falta quando há arritmia. Até o fim do ano, os testes serão feitos em animais vivos. Nos casos de isquemia, as toxinas protegem as células, o que foi comprovado em testes in vitro e já nos animais vivos.
“Essa é a que tem mais potencialidade, por causa disso. Conseguimos comprovar que a toxina era capaz de proteger a região mais afetada no choque isquêmico até duas horas depois. Levamos para a retina e, nesse caso, o tempo é de 90 minutos. Só que ela consegue recuperar as células que já estavam morrendo. Simulamos uma isquemia cerebral com o hipocampo in vitro, sem oxigênio e glicose e, depois, nos ratos. Precisávamos clonar essas substâncias em grande quantidade, mantendo sua eficiência, e isso já está sendo feito”, diz. Ele comemora: “Já publicamos esse trabalho em revistas especializadas internacionais e os cientistas, em suas análises, chamam de ‘uso fascinante de toxinas com provável aplicação clínica’”. As pesquisas sobre as toxinas que atuam contra a dor estão patenteadas nos Estados Unidos, no Canadá, no Brasil e na Europa. Já as usadas para o controle das isquemias e taquicardia estão patenteadas no Brasil.
Papoula-do-oriente
A morfina é uma substância com grande poder analgésico. Ela é originária da planta Papaver somniferum, conhecida popularmente como papoula-do-oriente. Ao se fazerem cortes na cápsula da papoula, quando ainda verde, obtém-se um suco leitoso, o ópio (a palavra ópio, em grego, quer dizer suco). Quando seco, esse suco passa a se chamar pó de ópio. Nele, existem várias substâncias com grande atividade. A mais conhecida é a morfina, palavra que vem do deus da mitologia grega Morfeu, o deus dos sonhos.
Fonte: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Cebrid/Unifesp)
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