terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Jovens com "fome de fogo"

Quando em Londres começou a vê-la com más companhias, o pai de Cátia Dias teve medo que a filha entrasse no mundo dos gangues. Por isso, decidiu que era tempo de voltar a Portugal, onde na pacata vila de Carregal do Sal, no distrito de Viseu, ela estaria segura. Dos oito bombeiros que morreram este ano nos incêndios, cinco eram jovens. Cátia tinha 20 anos. Muitos anseiam pelo fogo. É que, se "um actor quer ter o papel principal num filme conhecido, um bombeiro quer estar na frente a combater um incêndio"

Um toque de sirene é o mais comum, é a costumeira chamada para uma urgência em saúde; com dois toques, ainda há esperança, se ficar por ali significa que estão a ser convocados para um acidente, mas, quando ouve os dois toques, o que Tomás Coimbra, de 18 anos, mais deseja é que eles se transformem rapidamente em três e que a sirene pare de tocar. É que quatro toques, no corpo de bombeiros de Alcabideche (cada quartel tem o seu código), significa que há um incêndio urbano, mas os três são uma espécie de jackpot de Verão - o incêndio florestal.

No extremo oposto do incêndio florestal estão "as pataletas". Ninguém sabe dizer de onde vem nem o que significa a palavra usada em alguns quartéis, mas percebe-se pelo tom que usam que o termo é depreciativo. Fazer "as pataletas" é falar do mais rotineiro trabalho dos bombeiros, o transporte não urgente de doentes (por exemplo, levando-os de casa para a hemodiálise), que é também a actividade que lhes ocupa a maioria do tempo durante todo o ano.

Não é seguramente por causa das "pataletas" que, em contraciclo contra o envelhecimento crescente da população portuguesa, os quartéis de bombeiros se têm conseguido rejuvenescer: quase metade (45%) dos bombeiros portugueses têm entre 18 e 35 anos. No total, cerca de 85% são voluntários. Qual é então a atracção para os jovens?

Desde logo, o risco. "Cada situação para que saímos tem uma adrenalina diferente", explica Francisco Dias, ponderado nos seus 23 anos e bombeiro da corporação de Alcabideche (distrito de Cascais). Ele, o mais velho do grupo de amigos bombeiros da mesma corporação, prefere ser chamado para fazer urgências em saúde mas, entre os dois amigos de 18 anos (a idade mínima para se ser bombeiro), está isolado. No topo das preferências parecem estar os incêndios.

Tomás Coimbra diz que quando chega ao Verão está sempre ansioso por ouvir os três toques e que não é só ele. Quando se percebe que é mesmo uma chamada para incêndio florestal "desata tudo a correr e muitos, se pudessem, até iam com os seus próprios carros para o local". Digamos que, se "um actor quer ter o papel principal num filme conhecido, um bombeiro quer estar na frente a combater um incêndio, quer ser o agulheta". Numa equipa de cinco elementos, o agulheta é aquele que está a empunhar a mangueira, de caras para o fogo, explica.

"Eu não sabia nada de urgências, entrei para os bombeiros para combater o inimigo número um: o fogo", afirma Diogo Borba, de 18 anos. E quando se referem ao fogo não estão a falar de incêndios urbanos em que, sim, até pode haver uma botija de gás que se desconheça, que possa causar uma explosão, mas, "em princípio, o fogo não vai sair dali". No incêndio florestal, não se tem a certeza de que o fogo vai ficar circunscrito, "o vento pode, do nada, mudar" e deixá-los cercados. E essa imprevisibilidade que representa o maior perigo - na definição de cartilha que aprendem na formação obrigatória, um incêndio florestal é definido como "uma combustão livre, não limitada no tempo e no espaço" - é um dos ingredientes da "adrenalina" especial do incêndio florestal.

"Para os mais velhos, os incêndios já não são nada de mais. É uma rotina", diz Diogo. Para os jovens como ele, não. No Verão, primeiro instala-se a "ânsia de ir para o primeiro fogo do ano", depois "a sede de fogo", continua Diogo. Um incêndio "é o desconhecido", diz Francisco Silva, bombeiro de 17 anos que ainda não teve idade para sair.

Por causa dos incêndios, o Verão é também "a única altura do ano em que [os bombeiros] são reconhecidos. Durante três meses por ano somos falados dia sim, dia sim, no resto do ano só quando há inundações ou cai um placard", critica Francisco Dias.
fonte:Publico

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