Eram 7h50 da manhã, quando estava a chegar ao quartel. Passei a noite a fazer vigilância ao helicóptero que estava estacionado na Serra da Nogueira. Não me recordo quem me acompanhava, mas vínhamos então em sentimento de desespero por uma noite mal dormida, ansiando uma cama e camarata quente. O dia parecia quem nem tinha acordado. Uma neblina quase em forma de nevoeiro tomou conta de uma manhã, como que se avizinhasse de tragédia, como de que algo programado estava para acontecer, algo que ninguém esperava ouvir, algo que ninguém esperava sentir. A formatura aguardava-nos ás oito em ponto, na parada principal, mas uma azafama já se notava. Questionei-me, será por ser o praticamente o ultimo dia de ECINS? As caras de quem mandava não demonstravam isso. O comandante apressa a formação da formatura, e mal dá os bons dias, a sua cara transforma-se e diz-nos:" Tenho uma má noticia para vos dar. Houve um grave acidente com um dos nossos, foi com o Mito, ainda não sei bem o que se passou, mas parece que é grave. Foi perto do Porto, sei que está encarcerado e os Bombeiros de Valongo estão a fazer tudo por tudo para que corra bem". Acreditei. Algo se esbate sobre a formatura, como se caísse o céu em cima de nós... O meu telemóvel toca, mas como estava na formatura não atendi. Mais umas palavras e a formatura têm ordem para destroçar, mas não foi isso que aconteceu, após ter-mos batido o pé, reunimos-nos em grupos, como que procurando ter uma informação concreta do que estava a passar. Logo alguém falou o que ninguém queria ouvir: parece que o Mito morreu no acidente... não quis acreditar, como que quisesse parar o tempo e retirar aquela frase da fita de tempo, não conseguia, procurava uma esperança numa resposta que sabia que não existia. Após um momento de pânico interior, tentei esperar,por o que, não sei! O telemóvel toca de novo, era o meu amigo Sousa de Valongo, um dos que acorreu ao local do acidente. Atendi e depois de o cumprimentar logo me disse: Já sabes porque te estou a ligar, não já? O meu cérebro bloqueou. Continuei a conversa por telemóvel, mas não sabia o que estava a dizer, foi um momento de senilidade. Não queria acreditar, todos sofríamos na pele, aquilo que vimos noutros colegas, mas que muitos nunca tínhamos sentido! Perder um colega numa tragédia, em serviço! Nesse momento parou tudo o céu que havia mais perto era o tecto da parque de viaturas. O Comando reunido e atarefados com telefonema daqui, telefonema dali... É horrível...
Para mim que era novo na casa, concerteza nunca esquecerei o "Come e Dorme", como era carinhosamente apelidado. Chamado de Mito, diminutivo de Hamilton, era motorista da Associação á bom par de anos. Era daquelas caras que via todos os dias no quartel. Marcava, a sua cara rechonchuda, voz grossa e respiração ruidosa, deixou em todos uma recordação. Chamado de "come e dorme", porque nos intervalos de serviço era fácil apanha-lo na salinha dos Motoristas na sua sesta, depois de fazer uma valente refeição. As vezes ouvia-se ressonar de dentro da central com a porta fechada. Pessoa que eu descrevo de fases, gostava quando nos brindava com a sua óptima disposição. Apesar de tudo era uma homem simples, vivia também para o trabalho, lidava com os problemas dos outros, quantas vezes não terá ele sido o ouvido amigo, o saco dos desabafos dos doentes que transportou para o Porto, vezes e vezes sem fim... Nesse fatídico dia, transportava um doente para o Sto António, que padecia de uma doente infecto-contagiosa, e que os médicos o consideravam como doente terminal. Terá valido a pena iniciar a viagem por algo em que não exige esperança?! Sim,e ele cumprir a parte dele, como bombeiro que era. Apesar de tudo o valor humano teve peso e como de uma vida se tratava o doente merecia mais uma tentativa para a vida, tentativa essa que não se tornou numa oportunidade para o meu colega! Nem oportunidade teve de poder escolher entre a vida e a morte.
O acidente foi iniciou num choque na lateral traseira da ambulância, que fez com que a viatura perdesse a aderência na estrada molhada, e acabasse por ser lançada auto-estrada fora, obrigando as forças do movimento a capotar a ambulância vezes suficiente para que não houve salvação. As causas concretas eu não sei, ou não percebi, parecendo me ficar a investigação do acidente ao (des)cuidado das seguradoras...
Resultaram feridos do acidente , sem muita gravidade, o condutor da outra viatura envolvida, a auxiliar de acção médica que fazia o acompanhamento e o doente que ia ser transportado.
Mas o Mito não... Infelizmente não! Isto irrita... Porquê??? Porquê um bombeiros que passa a vida a tentar salvar outras. Que terá ele feito para que Deus, lhe cobrasse este destino?? Será que há justiça nas leis da vida?? Tudo isto foram as mais mínimas perguntas que fiz ao meu sub-consciente, sem obter uma única resposta concreta, a não ser o sentimento de injustiça e de desorientação ao nível da minha ocupação...
Para quem conheceu o Mito, concerteza sentirá saudades da sua companhia.P ara quem não o conhecia tão bem, como no meu caso, sentirei a falta de um colega amigo e a pena de não nos termos dado mais ao conhecimento. Para que não o conheceu, eu apresento-o: Era Motorista dos Bombeiros de Bragança!!! Homem de família, Pai de filhos, sofreu na pele, aquilo que muitas vezes lhe passou pelas mãos!
Estejas onde estiveres, que estejas bem colega!!! Descansa em paz...