O caldo está entornado, mesmo que, aqui ou ali, mas sem grande sucesso, reconheça-se, procurem aplicar mezinhas que aplanem o natural e justificado desgosto e revolta dos bombeiros contra, como muitos apontam, a “fuga orientada” de informações do relatório preliminar sobre os incêndios florestais do Verão passado.
Com base em tudo o que foi dito e escrito na comunicação social, é lícito questionarmo-nos sobre, caso não tivesse havido mortos, de quem seria a culpa? Ou, melhor, porque foram encontrados esses “culpados”, será que se vai ficar por aqui?
O perigoso culto do mediatismo tem destas coisas, verdadeiros alçapões e armadilhas que alguns tentam montar mas que, no fundo, muitas vezes, acabam por denunciar os seus próprios autores e propósitos.
Atribuir aos mortos a culpa do seu próprio desfecho tem a enorme “vantagem” de que não estarão cá para exercer o direito do contraditório. Teve, também, a particularidade de contribuir para o levantar da poeira suficiente que no final do último ano deu para perceber que as primeiras informações do relatório foram apresentadas com a mesma postura que um elefante adoptaria no interior de uma loja de vidros e porcelanas.
Produziram-se muitos cacos e danos e a memória dos mortos, antes tão enaltecida, afinal, parecia que agora era para denegrir e enlamear.
Até podemos admitir que a intenção não fosse essa, como alguns vieram à pressa a terreiro dizer, mas a realidade, o resultado inexorável e incontornável foi esse.
O nosso companheiro, presidente da LBP, comandante Jaime Soares, chamou bem a atenção, no seu “Ponto de Situação” da nossa edição de Dezembro, para o facto do mal estar feito. Não, por que os bombeiros temam o apuro da verdade, mas sim, o receio de verem deturpadas ou mal interpretadas muitas coisas.
Sublinhe-se, a propósito, o distanciamento assumido pelo ministro da Administração Interna relativamente às parangonas que foram aparecendo e agora renovado ao apelar à ponderação apesar de defender que das conclusões e recomendações do relatório terão que ser tiradas consequências.
Em abono da verdade, das conclusões e recomendações do relatório, que tive a oportunidade de ler, não consigo, reforçadamente, perceber a razão e a lógica das parangonas conhecidas e as “acusações” nelas proferidas por fontes “desconhecidas”.
Quem não sabe do envelhecimento da população do interior, do abandono da actividade agrícola, da falta de cultura de autoprotecção? O relatório também fala nisso.
Quem não ouviu já falar do incrementar de acções de prevenção estrutural, de sensibilizar os cidadãos para evitar acções de risco, de melhorar a integração e articulação para evitar acções de risco, reformular o uso do fogo como técnica de supressão, o melhor uso da previsão meteorológica à escala local, cuidar-se da vigilância e do rescaldo ou melhorar a coesão nas equipas de combate? O relatório também fala nisso.
O relatório fala ainda noutras coisas. Comecemos por, “melhorar a formação dos bombeiros em matérias relacionadas com o comportamento do fogo, em especial em situações extremas”, continuemos em “cuidar o equipamento dos bombeiros, não se poupando no seu preço, na sua qualidade ou na exigência das suas especificações” e ainda, “melhorar as condições de prestação de socorro aos bombeiros em situações críticas”. Serão temas novos? Acho que não. São recorrentes. Mas, estes e os anteriores, tendo sido enunciados ao longo dos anos, uns com mais ênfase que outros, não conseguiram até agora, pelos vistos, ganhar o devido relevo. Pese embora, o especial esforço dos próprios bombeiros nesse sentido.
A formação, como sabemos, nunca é um domínio fechado nem acabado. Todos o sabemos e isso tem sido uma realidade palpável. É necessário evoluir e, como prova a sua história, os bombeiros têm sido os primeiros nessa aposta. Há anos, quem falava em desencarceramento, em intervenção em grande ângulo, em verdadeiro pré-hospitalar, em intervenção cinotécnica, em intervenção em estruturas colapsadas? Foram os bombeiros e as suas estruturas que descobriram estas e outras disciplinas e defenderam a formação nesses domínios. Nessa altura, aliás, havia até quem achasse que apenas se tratava de bizarrias ou modernices e que os bombeiros andavam sempre a inventar coisas para gastar mais dinheiro. Será mentira aquilo que afirmo? Ou, quem o disse, já se esqueceu?
Por isso, não se diga que os bombeiros não têm formação por que não é sério nem justo. Não só têm como querem sempre mais. E, isso, provam-no dia a dia como, aliás, por exemplo, é o caso recente do seminário sobre socorro em parques eólicos promovido pela Liga e pela Juvebombeiro. Será bom é que outros se lembrem disso.
Sobre os equipamentos, já muito se disse. As evidências do passado recente só confirmaram tragicamente a realidade de que os bombeiros muito têm apontado. Todas as apostas que agora estão em curso para colmatar as principais necessidades e inverter as inexistências de outras já não irão resolver os problemas passados mas irão, por certo, evitar muitos outros futuros.
Melhorar as condições de prestação de socorro aos bombeiros em situações críticas é um domínio em que os bombeiros, a meu ver, por excesso de generosidade, não têm sido mais reivindicativos. Quem de direito, ao ler esta recomendação só não poderá ficar indiferente, e o futuro demonstrará isso ou não. Aliás, por maioria de razão, esse tema deveria ter merecido substituir, isso sim, as parangonas ciosas de “crucificar” os bombeiros falecidos.
No relatório, por fim, “recomenda-se a promoção de um programa nacional, envolvendo diversas entidades operacionais, autarquias, empresas e a comunidade científica, para implementar soluções do problema dos incêndios, florestais, de uma forma integrada e sustentada, por meio de acções de validação, demonstração e aplicação de medidas eficazes ou inovadoras das prevenções e segurança”.
Qual a razão, então, para que esta recomendação aqui tão bem formulada, como já foi avançada noutros anos, com idêntica ou semelhante elaboração, ainda não seja realidade?
O que me dói, com a máxima sinceridade, é que apenas os mortos façam este ano a verdadeira diferença, já que as recomendações e conclusões, com maior ou menor ênfase, soam sempre ao mesmo.
Se não tivesse havido mortes, pode-se concluir, então, o relatório iria passar despercebido e não haveria “culpados”. Ou estarei enganado? O futuro o dirá.
Rui Rama da Silva
Director do Jornal Bombeiros de Portugal
Vice-presidente da Liga de Bombeiros Portugueses
Nota em: http://www.bombeirosdeportugal.pt/
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