No governo ninguém faz ideia se as câmaras cumprem a lei e quantas multas são aplicadas a proprietários de terrenos.
As perguntas eram simples: quantas câmaras municipais têm os respectivos planos municipais de defesa da floresta contra incêndios (PMDFCI) elaborados e quantas foram detectadas em incumprimento nos últimos anos? Mas as respostas tardaram em chegar e chegaram incompletas. Contactado pelo i, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que absorveu a extinta Direcção-Geral dos Recursos Florestais, começou por garantir que o assunto não era da sua competência e sugeriu que as perguntas fossem feitas à Autoridade Nacional da Protecção Civil (ANPC) ou à Associação Nacional de Municípios (ANMP). Estas, por sua vez, disseram ao i que não dispunham de dados.
O Ministério da Agricultura e do Mar não respondeu às questões do i e o gabinete do ministro Adjunto e do Desenvolvimento Rural explicou que o ICNF é o "responsável pela aprovação" dos planos das autarquias - que visam a prevenção de incêndios através da adopção de várias medidas, entre as quais a limpeza de florestas nas situações previstas na lei. Mesmo assim, respondeu à primeira pergunta: das 278 câmaras de Portugal Continental, só seis não têm PMDFCI elaborado - por não terem mancha florestal suficiente. Dias depois, o ICNF admitiu ter dados, mas só sobre a primeira questão. Relativamente a eventuais incumprimentos por parte das câmaras, nenhuma das entidades soube responder. "A elaboração, execução e actualização dos planos é da competência da respectiva câmara municipal", explicou o ICNF. Ou seja, ninguém verifica se as câmaras cumprem a lei. Só as próprias câmaras.
CÂMARAS "NEGLIGENTES" Já a Quercus, que apresentou recentemente uma queixa na Procuradoria-Geral da República (PGR) para que sejam averiguados "incumprimentos dos deveres de prevenção e fiscalização previstos na lei para a defesa da floresta contra incêndios" por parte do governo e das câmaras, garante que as autarquias não cumprem os respectivos planos municipais. "Quase todas as câmaras elaboram os planos, mas a maioria não cumpre", garante João Branco, vice-presidente da associação ambientalista.
O responsável exemplifica com a ausência de redes secundárias e terciárias de gestão de combustíveis, corredores de dez metros em cada lado sem vegetação e arborização para evitar a propagação de incêndios que devem ser reservadas junto a auto-estradas e outras vias de comunicação, rios, caminhos florestais e infra-estruturas, como postes de alta tensão. "Um pouco por todo o país", assegura. A Quercus fala mesmo em "negligência" das câmaras, que "não cumprem nem fazem cumprir" os PMDFCI. É nestes planos que está consagrada, por exemplo, a obrigação de limpar o mato ao redor de estradas municipais e nacionais. "E a lei também impõe corte de arvoredo para que possa haver descontinuidade de floresta e não foi feito nada. Os municípios queixam-se que não têm dinheiro para isso, mas é uma questão de prioridades", acrescenta João Branco, que garante que se os planos fossem cumpridos os incêndios em Portugal teriam menor dimensão. "Facilitaria o combate e reduziria a progressão dos fogos. Teríamos, certamente, incêndios com menor dimensão", avisa.
AJUDA NO COMBATE Os PMDFCI vão além da simples limpeza de combustíveis para prevenir incêndios. Também ajudam no combate aos fogos, porque integram conjunto de cartas que permitem conhecer os acessos aos terrenos, o estado de conservação dos caminhos, em que locais existem pontos de água, cartas de declives, medição do risco de incêndios, entre outros instrumentos. "Trata-se de um plano de prevenção, mas também de apoio ao combate aos incêndios", resume João Branco, que exemplifica a importância destes documentos com o incêndio que lavrou este Verão no Gerês. "Os bombeiros queixaram-se que não havia acessos, mas essa informação deveria ser conhecida de antemão, porque devia fazer parte do plano municipal", sustenta.
VALOR DAS MULTAS DESCONHECIDO A lei portuguesa só obriga, no caso de proprietários de terrenos, à limpeza de combustíveis junto a estradas, vias férreas, linhas de alta tensão e ao redor de habitações. A "cartografia" destes locais faz parte dos planos municipais e compete à GNR fiscalizar no terreno. Havendo incumprimento, os militares do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) devem levantar autos de contra-ordenação - que são depois enviados para as câmaras municipais, a que compete gerir os processos administrativos e aplicar as coimas previstas na lei.
Se a transgressão se verificar junto a linhas de energia, vias férreas ou auto- -estradas, a multa é aplicada às empresas que concessionam esses serviços. Só nos casos das habitações isoladas é que a coima se aplica a privados - os donos das casas. A lei prevê penalizações para os infractores que podem variar entre os 140 e os 5 mil euros, se se tratar de uma pessoa singular, e entre 80 e 60 mil tratando-se de uma empresa.
No primeiro semestre deste ano, a GNR levantou 481 autos por falta de limpeza de combustíveis e no ano passado o número ultrapassou as 3 mil contra-ordenações. Isto não significa que os responsáveis tenham sido efectivamente multados: a GNR diz desconhecer quantas coimas foram aplicadas. "Isso é matéria que compete às autarquias", justificou a Guarda. O i tentou obter junto de todas as entidades contactadas para este artigo o número de multas aplicadas a privados e empresas e o respectivo valor global. No entanto, todas referiram não dispor de dados. O ICNF, a entidade que tutela as florestas e as áreas protegidas, explica que não dispõe de dados por não ter "intervenção nos processos em questão".
A legislação determina que, no caso de infracções que tenham a ver com proprietários de terrenos ou empresas de energia, linhas férreas, estradas ou queimadas e fogueiras ilegais, 10% das coimas revertam para a GNR e 90% para as câmaras. Nos restantes casos, 60% da multa vai para a ANPC, 20% para "quem autua" e 20% para o ICNF.
O que diz a lei sobre a prevenção
Redes primárias de gestão de combustíveis
• A definição das redes primárias e respectiva implementação cabe à administração central. Estas redes prevêem a limpeza de mato junto a grandes rios, nas cumeadas de grandes serras, entre outros locais, além da criação de faixasde contenção de incêndios. Na Região Norte, segundoa Quercus, a rede primária só foi definida este Verão – quando devia ter sido concluída há dois anos. O atraso impediu a candidatura às verbas do PRODERpara apoio a medidas de defesa da floresta contra incêndios.
Redes secundárias e terciárias
• Estão contempladas nos planos municipais de defesa da floresta contra incêndios – que as autarquias são obrigadas a elaborar e fazer cumprir, depois de aprovação ICNF.
• A lei obriga as câmaras a limpar mato numa área de 100 metros para cada lado em estradas municipais e nacionais.
• Os planos municipaisvão além da limpeza de combustíveis. Devem conter um conjunto de cartas (com dados como caminhos e respectiva conservação, pontos de água, carta de declives, identificação de risco de incêndio, entre outras informações) úteisno combate aos fogos.
• As redes terciárias de gestão de combustíveis têm a ver com a limpeza de mato ao redor de caminho-de-ferro, linhas de transporte de energia eléctrica e zonas envolventes a habitações ou aglomerados populacionais. Nestes casos cabe aos proprietários e às empresas ferroviárias ou de energia a limpeza de combustíveis. Compete à GNR fiscalizar. Se for detectado incumprimento, os autos são enviados para as câmaras, que depois conduzem o processo e multam os proprietários ou empresas responsáveis.
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