Com quase 130 mil hectares ardidos e mais de 20 mil incêndios, o ano foi trágico para os bombeiros, reavivando o debate sobre o estado da floresta, as estratégias de combate, e o comportamento de risco dos portugueses.
Os bombeiros têm de ter a coragem de dizer não e a sociedade tem de estar preparada para isso, porque há situações que não merecem o sacrifício de uma vida. É esta a conclusão de Xavier Viegas, especialista no comportamento do fogo, depois de uma época desastrosa ao nível dos incêndios.
Está fechada a fase "Charlie" de combate a incêndios, que cruza o período mais crítico dos três meses de Verão. Ao longo desta semana, a Renascença faz o balanço de uma época que já tem lugar garantido entre as mais complicadas da última década.
Com quase 130 mil hectares ardidos e mais de 20 mil incêndios, o ano foi trágico e reavivou o debate sobre o estado da floresta, as estratégias de combate, e o comportamento de risco dos portugueses. Mas o que ficará como marca do ano são as consequências humanas e, sobretudo, o luto que se instalou no dispositivo dos bombeiros.
Para o especialista Xavier Viegas é até hipócrita chorar a morte dos bombeiros perante tantos comportamentos de risco.
“A gestão de combustível, uso de fogo controlado, cortes de ramagens, limpezas de bermas, limpezas em volta das casas. Muitas das situações em que vemos os bombeiros a meterem-se em perigo é porque têm de ir salvar casas, porque as casas não estão devidamente protegidas. São as pessoas que não tiveram esse cuidado e colocam em risco os bombeiros. É uma hipocrisia estar a chorar os bombeiros quando não fazemos alguma coisa para evitar essas mortes por meio desta acção. Quando isso toca instâncias do Estado, dependentes do Estado, penso que é particularmente grave que não se esteja a fazer o que se deve.”
Xavier Viegas não tem nesta altura qualquer dúvida: Os bombeiros "têm de ter essa coragem de dizer não. Dizer que há situações em que não se metem lá. E as pessoas têm de estar preparadas para ouvir isso. Os bombeiros têm um lema que é ‘vida por vida’, mas nalguns casos não se trata de vida, são pedras, calhaus, ervas, arbustos, nem que sejam casas. Não justificam o sacrifício da vida".
Mais de 300 fogos por dia
Na conjugação de factores que faz deste um dos piores anos, destaca-se uma vez mais o número de incêndios registados, que continua a deixar os especialistas nacionais e estrangeiros estupefactos.
O sistema de combate está pensado e montado para um limite de 250 incêndios por dia, mas em Agosto, e durante várias semanas seguidas, a média diária esteve sempre acima dos 300, com vários dias a ultrapassar os 400.
Pior ainda quando 80% dos 20 mil incêndios deste ano foram a Norte do Mondego, 70% ocorreram em apenas um mês, o de Agosto, e quando a taxa de incêndios nocturnos é tão alta, que quase não dá tempo aos bombeiros para se reorganizarem.
Quando assim é, ficam evidentes duas das outras notas negativas do ano. Torna-se difícil evitar que muitos fogos ganhem dimensão e se transformem em grandes incêndios de vários dias, e não há manifestamente tempo e meios para fazer os rescaldos correctamente, dando assim origem a elevadas taxas de reacendimentos.
“Não somos um país de loucos”
Duarte Caldeira, ex-presidente da Liga dos Bombeiros e da Escola Nacional de Bombeiros, não tem uma explicação, mas acha que é tempo dela existir. “É anormal. Há um excesso de concentração ao Norte do Mondego, do número de incêndios declarados ao longo deste Verão, que não deixa de ser estranho, quando comparado com anos anteriores. Eu não quero acreditar que sejamos um país de loucos ou de pirómanos, não somos um país de desequilibrados mentais. Portanto, há aqui qualquer coisa que carece de análise e que estará a ser analisado por quem compete”.
Com origem negligente em 34% dos casos investigados ou com origem dolosa, que este ano ronda os 23%, o que o académico Xavier Viegas sabe, é que o fogo teve todas as condições para fazer estragos sérios: “Tivemos uma Primavera e tínhamos tido antes um Inverno com grande precipitação, que deram origem a uma vegetação fina, muito abundante. Após o mês de Junho, em que cessou a chuva, começou a secar e depois tivemos um período de seca, com valores muito altos. Fez com que essa vegetação que estava no terreno, uma boa parte da qual não foi cortada, ficou disponível para propagar estes incêndios”.
As mesmas tantas vezes identificadas. “Este é um desastre anunciado", diz Duarte Caldeira.
“É verdade que o perfil meteorológico é potenciador da gravidade dos incêndios florestais, mas há outros factores que, não sendo tratados em devido tempo, a saber, uma política integrada de prevenção que altere o risco que a floresta portuguesa hoje configura, uma alteração na política de ordenamento do território, nomeadamente o povoamento de zonas que estão completamente despovoadas, com população idosa, sem mobilidade, sem capacidade de alteração estrutural desse mesmo território, sem vivência, logo sem trabalho da terra. Eu diria que este ano se reuniu o tal cocktail cultural, social, económico e de risco.”
Fim do experimentalismo
Duarte Caldeira considera impossível que a gestão deste problema continue a estar dispersa por quatro ministérios e defende em vez disso uma centralização mais próxima do primeiro-ministro, por exemplo na presidência do conselho de ministros. Na sua opinião, politicamente, não há governos inocentes. Ao actual, entre outras coisas, aponta o erro de ter acabado com os governos civis, e a coordenação que permitiam e apela ao fim do experimentalismo no sector dos bombeiros e da Protecção Civil.
“Este sistema tem sido marcado por um excesso de experimentalismo, por uma ausência de avaliação de resultados e de consolidação de doutrinas e modelos de organização. Quando alguém entra, mesmo que não altere tudo, altera sempre alguma coisa. E portanto continuamos a ter um sistema de protecção civil que carece de solidificação. É tempo de acabarmos com o experimentalismo.”
Neste capítulo da acção política o actual Governo já deixou a sua marca. Esta época de incêndios fez-se com um novo presidente da Autoridade Nacional de Protecção Civil, um novo Comandante Nacional de Operações, e vários novos comandantes distritais, uma nova Lei Orgânica que criou cinco agrupamentos distritais de coordenação, montados praticamente em cima do verão, e algumas outras medidas, como por exemplo a extinção da Empresa de Meios Aéreos, que tem sido confusa, e ainda só foi parcial.
Na vertente operacional os números falam por si. Somando os meios empenhados em todos os incêndios, contam-se mais de 360 mil bombeiros, quase 97 mil viaturas e sete mil missões dos meios aéreos. Algumas dezenas delas feitas por aviões franceses, espanhóis, e croatas, que responderam ao pedido internacional de ajuda lançado por Portugal.
Luto instalou-se
Mas o que ficará como marca do ano são as consequências humanas e, sobretudo, o luto que se instalou no dispositivo dos bombeiros.
Oito mortos, cerca de 60 feridos, três deles ainda internados, a que se junta a morte de três civis em cenários de incêndio.
Duarte Caldeira, durante oito anos responsável pela escola que forma os bombeiros portugueses, diz que essas tragédias têm que ser rigorosamente investigadas e explicadas, mas também que é preciso parar para pensar, e reconhecer que falta alguma formação específica: "Oito mortes este ano em bombeiros, e as circunstâncias em que estas ocorreram, obrigam-nos a entender o que correu mal. Isto significa ter a disponibilidade e a humildade de nos questionarmos sobre os modelos de formação. Será que os combatentes conhecem suficientemente a meteorologia? Será que, nomeadamente os bombeiros, estão devidamente dotados de competências ao nível do comportamento do incêndio? Será que estão seguros da colocação dos meios, em função das características do terreno?”
Falta cultura de segurança acrescenta. “Temos bombeiros com uma elevada generosidade, uma elevada carga emocional e adrenalina, e este inimigo exige um superavit de racionalidade. Não é possível continuar a ter homens e mulheres em combate sem respeitar os ciclos de repouso. Temos de alterar e introduzir na formação uma nova dimensão da segurança. Porque as guerras ganham-se com soldados vivos, não como soldados mortos.”
O balanço desta época de incêndios é negativo. Os quase 130 mil hectares ardidos ficam claramente acima da barreira dos 100 mil, que o próprio Governo define como limite aceitável, e há muito que não se ouviam tantos apelos para que toda a estratégia de prevenção e combate seja revista.
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