segunda-feira, 9 de abril de 2012

Há Muito Mais Notícia Numa Floresta Queimada Do Que Em Árvores a Arder

Está aí a começar - ou já começou, e não me dei conta - a época oficial dos fogos florestais. A ideia de existir uma "época oficial" para o flagelo que destrói o arvoredo e ameaça populações seria patusca se não fosse trágica. Imagino sempre que, sendo uma "época oficial", haja inaugurações, discursos com a imprescindível "na certeza porém", bênção e formaturas de bombeiros a apresentarem machadinhos e agulhetas, a esposa do ministro, muito cumprimentada pelo elegante chapéu e luvas, soltando graciosamente um cocktail Molotov, preparado em garrafa que teve patriótico espumante português, contra um pinheiro previamente besuntado de resina para uma chama rápida - uma espécie de batismo de fogo a imitar os lançamentos de navios à água. E "época oficial" faz pensar em guardas florestais a autuar incendiários furtivos - por lançarem fogo na época de defeso...

Passado este cerimonial imaginável, estarão aí os fogos - e os jornais e televisões a competir com imagens nas notícias de tragédia. É a corrida ao horrivelmente belo, as fotos e os filmes em disputa adjetiva do relato do desastre. É, por isso, necessário refletir sobre como cobrir esses fogos gigantescos.

Já participei em diversos debates com especialistas nesta área e psicólogos e sociólogos parecem-me convergir num ponto em que os jornalistas - em especial os repórteres de imagem - mostram grande renitência em aceitar. Um repórter de imagem, seja ele fotógrafo ou operador de câmara, é tendencialmente um esteta, deslumbra-se com o que vê e quer partilhar a captura que fez do instante com o público a quem entrega o seu trabalho. Quer mostrar um fogo no ponto máximo da sua feeria, arrisca a vida (porque dele próprio se esquece) para registar o momento - e anseia por chegar o mais perto possível das labaredas, num inebriamento de calor que o põe quase em transe. Quem pode condenar o captor que se deixa ser cativo da captura?

Mas fez jornalismo, verdadeiro jornalismo, esse repórter de imagem? Essa é a questão. A notícia onde está? No fogo ou nas consequências dele? O nosso bê-á-bá diz-nos que a notícia se encontra no último acontecimento, não no primeiro. É isso que costumamos identificar como a diferença entre a narrativa jornalística e a do conto ou do romance: este começa com o homem a entrar no automóvel para fazer a viagem; aquela começa com o homem morto no acidente contra a árvore.

(Jean-Paul Sartre, em A Náusea, garante que até a narrativa de romance começa pelo fim: quando o autor abre o texto com "Estava uma bela manhã" já sabe o que vai acontecer anos depois dessa "bela manhã" e não foi por acaso que escolheu começar por aí - organizou o puzzle da frente para trás.)

Eis-nos, portanto, perante o duelo entre a estética do momento e o dever de informar. A imagem que vale por mil palavras, o instantâneo assombro das labaredas, fala, fala, fala - mas não dá a notícia. Esta está no arvoredo destruído, no chão calcinado, na vida carbonizada. A notícia do incêndio não é o fogo - é o carvão.

É exatamente o que ouvi pedirem psicólogos e sociólogos em debates sobre a cobertura jornalística dos incêndios. E por uma razão acrescida: o fogo tem algo de feiticeiro - deslumbra e convida. Ao pé dele, o prazer de ver arder é viciante. Perto de uma lareira, dificilmente se resiste a lançar mais alguma coisa que avive as brasas e as converta em chamas.

(Pepe Carvalho, o detetive ficcionado pelo grande Manuel Vázquez Montalbán, não resistia a lançar para a fogueira os seus velhos clássicos do marxismo, antecipando o ritual de purificação para ingressar no sistema velho-liberal de não sei quantos dirigentes políticos e jornalistas portugueses, outrora verdadeiras vestais do estalinismo-maoísmo - ai, fogo de apagar memórias...)

Não há estatísticas exatas e indiscutíveis das causas dos incêndios florestais. Apontam- -se, habitualmente, três: combustões espontâneas fortuitas em flora ressequida e áreas desleixadas; fogo posto para compra barata de madeira ardida ou para "desbloquear" loteamentos urbanísticos; e obra de pirómanos, habitualmente identificados como doentes.

O que ouvi de psicólogos e sociólogos é que, neste terceiro caso, a doença pode ser apenas ocasional, uma tentação momentânea, como aquele adolescente que confessou ter lançado fogo a uma mata ou floresta só para ver os aviões lançarem água. Estes "doentes", crónicos ou ocasionais, precisam de ser dissuadidos do crime de que não têm perfeita consciência, no momento de o praticarem, dizem-me os psicólogos.

Ora, o fogo só é dissuasor quando lhe sentimos o calor. Quem já esteve perto de um incêndio de grandes proporções e sente, a centenas de metros, a pele a querer sair do corpo, já conhece o medo que o fogo provoca. Mas as notícias dos fogos, por mais que falem nele, não conseguem fazer-nos sentir o calor.

Por isso, os jornalistas devem ter redobrado escrúpulo na publicação de imagens de incêndios: por um lado, porque a notícia está no que ardeu e não no que esteve a arder (felizmente, nos jornais, não temos de falar em "diretos", mas vamos ter de pensar nisso perante as possibilidades de multimédia do online); por outro, há que ponderar o dever de não estimular as práticas incendiárias, se os psicólogos e sociólogos têm razão nas suas advertências - e não me custa nada a crer que sim.

O online veio trazer mais uma razão de cautela: ao verificar as caixas de comentários de notícias sobre incêndios, é preocupante ler tiradas de "pirómanos teóricos", dos quais não sabemos se o fazem por se acharem muito engraçados ou se são, de facto, doentes mentais. E, se o forem, a que distância estão de pôr em prática as suas teses e imaginações nerónicas?

Eis-nos de novo nesta delenda Carthago suscitada pelas caixas de comentários. Havemos de ficar de braços cruzados? Não deve ser restringido o acesso a quem, sob o guarda-chuva da liberdade, propagandeia e incensa a destruição pelo fogo?

No mínimo, o DN deve ter uma estratégia de informação dos fogos, para cuja reflexão proponho dois pontos: fazer o possível por publicar o que ardeu e não o que esteve a arder; e, na eventualidade de querer ilustrar uma notícia de incêndio com uma foto de arquivo, NUNCA mostrar chamas, mas sim áreas ardidas.

O que atrás escrevi não se aplica, obviamente, aos atos - uns dirão tresloucados, outros heróicos - em que alguém se imola pelo fogo num protesto político ou social. Recentemente, um jovem tibetano, Jamyang Yeshi, decidiu suicidar-se pelo fogo, em Nova Deli, em protesto pela presença, na Índia, do Presidente da China, país acusado de usurpar a soberania do Tibete.

Num caso destes, entendo que é adequado e correto dar a imagem da imolação pelo fogo e não propriamente do corpo carbonizado. Aqui, a notícia é o sacrifício que o manifestante escolheu, para dar o testemunho. Foi o que fizeram monges budistas no centro de Saigão, nos anos 60, em protesto contra a presença militar norte-americana no Vietname. Foi o que fez, simetricamente, em janeiro de 1969, o jovem Jan Pallach, protestando contra a invasão soviética da Checoslováquia que visou pôr fim à Primavera de Praga.

Um sacrifício tremendo perante o qual me curvo, em respeito - apesar de todas as dúvidas e discordâncias. Se estivesse por perto, sentir-me-ia obrigado a tudo fazer para impedir. Não o conseguindo, como jornalista, não tenho dúvidas: a notícia está ali, no ser vivo em chamas.

E sonho com o dia em que consigam colocar, nas caixas de comentários online, um mecanismo que dispare um pano encharcado na fachada daqueles que se permitiram fazer graçolas alvares sobre o jovem tibetano.

provedordoleitor@dn.pt
Fonte: JN

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